quarta-feira, 16 de junho de 2010

Reforma do Código de Trânsito Brasileiro


O advogado paranaense Marcelo José Araújo e Luis Fláavio Gomes foram ouvidos em audiência pública, por vários parlamentares, no último dia 26/05/10, na Câmara dos Deputados, sobre uma “possível” reforma do Código de Trânsito Brasileiro.

A sessão foi presidida pelo Dep. Milton Monti e, dentre outros, achavam-se presentes os deputados Hugo Leal, Marcelo Almeida, Beto Albuquerque e Lázaro Botelho.

O que deveria ser modificado, de forma mais urgente, no Código de Trânsito brasileiro? Dentre tantos outros pontos que poderiam ser lembrados, deveríamos:

(a) modificar a redação do art. 306 do CTB (embriaguez ao volante);

(b) punir mais severamente a combinação entre crime de trânsito e álcool e

(c) criar uma nova figura delitiva, que estamos chamando de “condução homicida ou suicida”.

Primeiro ponto (art. 306 do CTB)

O art. 306 do CTB, que cuida da embriaguez ao volante, ao exigir 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, criou um sério problema para a eficácia da lei (gerando muita impunidade).

Qual é o problema? É que existem apenas duas formas de se comprovar essa dosagem alcoólica: exame de sangue e bafômetro (etilômetro). E se o motorista recusar tais exames? Como comprovar a taxa de álcool exigida pela lei?

O motorista pode recusar tais exames? O tema é polêmico. Há uma ADIn no STF sobre o assunto, mas até agora o STF nada decidiu sobre o mérito dela. Não se concedeu liminar, mas a dúvida persiste.

Por quê? Porque em princípio ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. Ninguém é obrigado, em regra, a ceder a corpo humano para a realização de prova auto-incriminatória.

Isso está gerando uma grande impunidade (e muita confusão jurídica). A Quinta Turma do STJ chegou a dispensar a comprovação da dosagem alcoólica: isso é juridicamente um equívoco enorme.

Sugestão: eliminar do texto legal a exigência quantitativa acima referida, descrevendo o tipo penal de forma simples e direta (mais ou menos assim): dirigir veículo automotor em via pública sob a influência de álcool ou substância de efeito análogo.

Não importa a quantidade de álcool por litro de sangue. Tolerância zero. Mas é fundamental atentar para o seguinte: deve-se comprovar que o motorista dirigia “sob a influência” do álcool ou outra substância de efeito análogo.

E o que revela que o motorista estava sob a influência do álcool ou outra substância? Uma das formas possíveis consiste em comprovar uma condução anormal (zig-zag, passou no sinal vermelho, subiu numa calçada etc.). Nisso consistiria o crime de embriaguez ao volante.

Qual seria a diferença entre o crime e a infração administrativa (CTB, art. 165)? A seguinte: se o sujeito dirige sob a influência de qualquer quantidade de álcool ou substância análoga, porém, de maneira normal, é infração administrativa. Se dirige de forma anormal (zig-zag etc.), infração penal. A 8.ª Câmara Criminal do TJ do Rio de Janeiro já acolheu essa tese.

Uma segunda sugestão: nos crimes previstos nos arts. 302 e 303 do CTB (homicídio culposo e lesão corporal culposa), desde que se comprove concretamente a influência do álcool ou substância de efeito análogo, a pena deveria ser aplicada em dobro.

Uma outra alteração sancionatória: neste caso, tratando-se de homicídio, a pena deveria ser de reclusão (sugestão de Beto Albuquerque).

A pena sofreria uma dupla mudança: (a) passa a ser de reclusão e (b) deve ser aplicada em dobro.

Terceira sugestão: deveria ser criado no CTB o delito de condução homicida ou suicida, com a seguinte redação:
“Art. 302-C. Conduzir veículo automotor em via pública com temeridade manifesta, colocando em risco a vida de outrem com consciente desapreço por esse bem jurídico:

Penas reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor e multa”. Quando a conduta perigosa não afetar pessoas concretas, a pena de reclusão será reduzida pela metade”. (NR)

“Parágrafo único. Se da conduta resulta morte, aplica-se o disposto no art. 121 do CP”.

Condução homicida ou suicida: condução homicida ou suicida consiste em dirigir com temeridade manifesta (ou seja: imprudência gravíssima) e, ao mesmo tempo, com consciente desapreço pela vida alheia.

Exemplo: dirigir na contramão de modo consciente (dirigir numa rodovia na contramão), representando a possibilidade de uma morte, aceitando-a e atuando com total desapreço pela vida alheia.

Outro exemplo: participar de “racha” (corrida não permitida) e de modo consciente representar o resultado morte, aceitando-o e agindo com total indiferença frente ao bem jurídico vida.

O delito em destaque se chama condução homicida ou suicida porque o agente pode (a) matar um terceiro ou (b) se matar. Na primeira hipótese temos a condução homicida.

Na segunda a condução suicida (caso Plens, ocorrido na Rodovia Castelo Branco). Pode dar-se ainda uma combinação das duas formas: o condutor pode matar terceiro e também morrer.

Penalmente falando o que importa é a condução homicida, que pode configurar:

(a) um resultado de perigo para pessoa determinada (quase matou uma pessoa);
(b) um resultado de perigo para pessoas indeterminadas (não afetação de pessoas concretas);
(c) o resultado morte.

Exemplos: (a) o sujeito dirige em alta velocidade e, na contramão, numa rodovia, quase matou um outro motorista que estava na mão correta;

(b) o sujeito dirige na contramão numa rodovia mas naquele momento nenhum motorista concreto correu risco de vida;

(c) o sujeito dirige na contramão numa rodovia e mata um terceiro.

Na primeira hipótese (risco concreto para pessoa determinada) o que temos é uma tentativa de homicídio cometida com dolo eventual. O dolo eventual em Direito penal exige: (a) representação do resultado; (b) aceitação do resultado (“se morrer, morreu”); (c) indiferença (desapreço) frente ao bem jurídico.

Na atualidade o enquadramento da condução homicida vem gerando muita controvérsia. Há muita imprecisão sobre isso. Tudo decorre da ausência de uma tipificação especial (ad hoc). Pode a condução homicida surgir em razão de uma aposta, do ânimo de exibição, de um “desgosto” etc.

Dirigir na contramão já retrata uma condução temerária. O delito de condução homicida não deixa de ser uma condução temerária, porém, com alguns ingredientes que lhe dão vida própria. O fundamental consiste no total desapreço pelo bem jurídico vida (própria e alheia).

É esse manifesto desapreço pela vida alheia que conduz à pena de 3 a 10 anos de reclusão. Se o bancário Plens não tivesse morrido e se a tipificação proposta já existisse no Brasil, ele teria praticado o delito que estamos analisando (condução homicida). Antes de morrer, ele colocou em risco a vida de várias pessoas. Se tivesse sobrevivido, teria que responder pelo delito novo (caso já existisse).

O que justifica a pena de 3 a 10 anos nesse caso é o dado subjetivo exigido pelo tipo: consciente desapreço pela vida alheia. Não se trata, como se vê, de um delito culposo. Estamos diante de um delito doloso eventual.

Isso foge da estrutura normal dos delitos de trânsito (que, em geral, são culposos). O dolo do agente abrange não só a infração da norma (o sujeito dirige com consciência de que viola uma regra de trânsito), senão também o próprio resultado (ou seja: para ele a morte de um terceiro passa a ser indiferente).

A uma conduta altamente temerária se alia um dado subjetivo gravemente reprovável, que é a indiferença (o desapreço) pela vida alheia. O sujeito tem consciência da infração da norma de trânsito e ainda diz: “se morrer, morreu”. A postura subjetiva do agente, no dolo eventual, revela alta reprovabilidade porque ele aceita o “que se dane”.

Se o sujeito trafega na contramão de uma rodovia mas não coloca em perigo concreto a vida de ninguém, a pena é reduzida de metade, em razão da proporcionalidade (fato de menor gravidade tem que ser punido com pena menor).

Se o sujeito da condução homicida mata um terceiro, responde pelo delito de homicídio consumado (CP, art. 121).
Fórmula EEFP: Educação, Engenharia, Fiscalização e Punição

As reformas legislativas propostas são necessárias (de acordo com nosso ponto de vista). Mas é uma ilusão imaginar que, apenas com reformas legislativas, vamos alterar o quatro terrorífico de mortes no trânsito no Brasil (cerca de 35 mil por ano).

Como prevenir tantos acidentes e mortes?

Da teoria dos 3 “ês” de David Duarte Lima (Folha de S. Paulo de 15/01/05, p. A3) – engenharia, educação e enforcement (punição) estamos evoluindo para a teoria EEFP: Educação, Engenharia, Fiscalização e Punição (Enforcement).

No que se relaciona com a Educação no trânsito muita coisa está por ser feita. Esse é o lado preventivo da violência, do qual pouco cuidam o Estado e a sociedade civil.

Nossa formação étnica separatista está treinada só para atuar repressivamente! Em lugar de prevenir acidentes o poder público avisa, com placas, que os acidentes vão acontecer. Por exemplo: “Curva perigosa, acidente iminente”, “Local de acidentes freqüentes” etc. Cuida-se de uma auto-profecia que se cumpre corriqueiramente.

A Engenharia tem que se preocupar com a segurança dos veículos assim como construir boas estradas, com alto nível de segurança, bem sinalizadas; fazer de tudo para evitar a aquaplanagem, desenvolver técnicas que obriguem a redução da velocidade onde isso seja necessário etc. Lamenta-se que pouco disso esteja ocorrendo nas nossas estradas, ruas e vielas. A não duplicação total da BR-101, até hoje, é um aberrante exemplo!

Considerando-se que as principais rodovias do país contam com pedágios, parece muito simples (nelas) conter o excesso de velocidade: que o pedágio seja cobrado conforme a velocidade média desenvolvida em cada trecho.

Quem excede em 10 ou 20 ou 50% ou mais a velocidade permitida, calculado pelo tempo gasto entre um pedágio e outro, pagaria o dobro do preço ou o triplo e assim por diante (numa tabela progressiva). Não podemos nos esquecer que o bolso (especialmente do brasileiro) ainda é uma parte sensível do “corpo” humano!

Outra medida interessante vem sendo adotada nos EUA: é um bafômetro dentro do veículo que impede a partida do carro quando se constata excesso de álcool. Constitui um tipo de “nariz eletrônico”: “cheirou” álcool o carro não funciona.

No Estado do Novo México (EUA) essa medida já reduziu em 11% o número de acidentes envolvendo motoristas embriagados (VEJA de 29/11/06, p. 102). No Brasil, 12,3% da população é dependente de álcool (considerando-se a faixa etária de 18 a 24 anos, 19% são dependentes O Estado de S. Paulo de 23/11/06, p. C10).

Essa combinação entre o álcool, o volante e a faixa etária é altamente mortal: 30% das mortes no trânsito estão relacionadas com o álcool (VEJA de 29/11/06, p. 103).

Fiscalização (controle, vigilância): de nada adiante o legislador fazer o melhor código do mundo, se não é cumprido. Todos os ajustes legislativos corretos são bem-vindos.

O problema é a fiscalização posterior. O Brasil, com freqüência, peca não por ausência de normas, sim, pela leniência no seu cumprimento. Essa leniência tem vários fatores; um deles, seguramente, é a falta de policiais. A PRF deveria ter 18 mil homens, segundo orientação do TCU, mas só conta com 9,2 (O Estado de S. Paulo de 1/02/08, p. C6).

É impressionante como a fiscalização modifica o comportamento humano. Em termos preventivos, a fiscalização séria de todos é muito mais eficiente que a punição de apenas alguns (por amostragem).

Nos primeiros dias de vigência da Lei 11.705/2008, considerando-se a intensa fiscalização que foi feita, não há dúvida que muita gente evitou a chamada direção embriagada.

No que concerne à Punição (ao Enforcement), que conduz ao cumprimento das leis, a maior dificuldade reside na cultura engendrada pela sociedade étnica dominante de “levar vantagem em tudo”, de “explorar o outro”, de disseminar a corrupção, saquear o dinheiro público etc.

Queremos regras duras, porém, “para os outros”! Que o Código de Trânsito seja duro contra “os outros”, que as multas afetem “os outros” etc. Para nós, que o excesso de velocidade seja permitido, que o cinto de segurança não seja obrigatório, que as crianças fiquem soltas no veículo, que o capacete permaneça como protetor de cotovelo, que a embriaguez ao volante seja tolerada e divertida etc.

Não temos que reinventar a roda: a responsabilidade não é só do Estado, também é da própria sociedade, dos motoristas, do sistema educacional etc. Cada qual tem que cumprir seu papel, jogando energia na teoria EEFP. Do contrário, nosso cenário de mortes violentas (leia-se: nossa guerra civil) perdurará eternamente, enlutando a cada ano mais de 35 mil famílias.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br.

Equipe Fenatracoop

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